Seminários regionais preparam a maior e mais qualificada participação indígena na história das COPs
Por Talita Oliveira | OPAN
Vivemos um momento em que a história é escrita em ritmo acelerado: de um lado, o avanço do fascismo; de outro, a resistência de quem insiste em “segurar o céu”. Enquanto interesses individuais e mercadológicos seguem ditando agendas, iniciativas dos povos indígenas se multiplicam na busca por um planeta possível.
“O sentido de tudo é a nossa luta. Cada passo que estamos dando é muito importante”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, no último dia 15, em Lábrea (AM). Primeira mulher indígena a assumir um ministério no Brasil, Sonia também foi a primeira ministra de Estado a visitar o município, situado no chamado “arco do desmatamento”. Ali, no entanto, políticas públicas em curso apontam a intenção de transformar esse território em “arco da restauração”.
A visita da ministra ocorreu durante a 11ª etapa do Ciclo COParente, uma série de encontros preparatórios promovidos pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em todo o país, com o objetivo de fortalecer e qualificar a participação indígena na 30ª Conferência das Partes (COP 30), que acontecerá em novembro, em Belém (PA).
Seminários regionais Amazonas
O Amazonas concentra a maior população indígena do país, com quase 500 mil indígenas de 60 povos diferentes, segundo dados do censo de 2022. Por isso, diferente dos outros estados onde ocorrem apenas as etapas estaduais, o Amazonas recebeu três seminários regionais do Ciclo COParente – sendo o primeiro deles em Lábrea, seguido de São Gabriel da Cachoeira e Manaus -, acolhendo uma proposta da Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), que conduziu a organização dos eventos no estado.
Em Lábrea, o seminário aconteceu nos dias 14 e 15 de setembro e contou com representantes dos povos indígenas das regiões do Alto e Médio Madeira e Purus. A mesa de abertura, ampla e diversa, foi composta por 22 pessoas, entre representantes das organizações indígenas e organizações não governamentais parceiras, além de membros do poder público.
“Antes só tínhamos brancos como nossas lideranças em eventos como esse. Fico feliz em ver que agora essa mesa é composta majoritariamente por nossas lideranças indígenas”, observou Jecinaldo Sateré, chefe da assessoria de participação social e diversidade do MPI.
Mariazinha Baré, coordenadora executiva da Apiam, destacou a importância da iniciativa ser um espaço propositivo e de exercício do controle social. “Nós já conhecemos muito as nossas dores e vamos continuar falando delas, levando nossas vozes. Mas a mudança climática não atinge só um povo, atinge todos. Por isso é necessário que a gente supere os nossos desafios e proponha, para que a gente continue sendo forte”, afirmou.
Pressões e impactos no sul do Amazonas
O primeiro dia de debates apresentou um panorama das ameaças locais, da situação dos territórios indígenas no sul do Amazonas e das iniciativas em curso para adaptação e mitigação das mudanças climáticas. O cacique Zé Bajaga, coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), expôs uma linha do tempo que demonstra o avanço do desmatamento entre 2019 e 2024, com Lábrea despontando como o município mais crítico da região.
Outro dado alarmante foi o impacto em cadeias produtivas tradicionais, como a da castanha-da-amazônia, cuja produção chegou a zero em 2025. Somam-se a isso a pressão do garimpo ilegal, que ameça os rios e a segurança territorial dos povos indígenas. “Nós temos que dizer o que queremos e do jeito que queremos. Não queremos mercúrio dentro dos nossos territórios e rios”, enfatizou Bajaga.
Mariazinha Baré trouxe um compilado de legislações a nível estadual e nacional que estão em tramitação e representam ameaças diretas aos povos indígenas, com destaque para o Decreto Estadual nº 52.216/2025, “que prevê uma anistia generalizada a desmatadores, legaliza a grilagem de terras públicas e fragiliza de forma irreversível a proteção de territórios indígenas”, segundo nota técnica elaborada pela Apiam. O documento foi protocolado no Ministério Público Federal (MPF) requerendo do órgão o ajuizamento imediato de ação civil pública com pedido de suspensão liminar do decreto.
Justiça climática
Andreia Fanzeres, coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (OPAN), contribuiu para o debate sobre o funcionamento das conferências do clima, detalhando conceitos como mitigação, adaptação e as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Ela ressaltou, contudo, que um tema central para a sociedade civil costuma ficar de fora das negociações oficiais: a justiça climática.
“A justiça climática não está nas mesas de negociação, mas é um princípio levado pela sociedade civil em todos os espaços de incidência política nas conferências, já que todos sofrem com as mudanças climáticas, mas de formas distintas: quem tem acesso a certos recursos não enfrenta os mesmos impactos de quem vive em áreas remotas e depende diretamente da natureza. Por isso, a justiça climática é a tradução da justiça social: aqueles em situações mais vulneráveis precisam ser atendidos primeiro e ter prioridade nas políticas públicas”, destacou.
Chico Preto Apurinã, liderança histórica do movimento indígena, conselheiro do Fundo Podáali e assessor indígena no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Purus (DSEI/ARP), relatou a experiência da Eco-92, quando a pressão internacional vinculou a cooperação financeira à ampliação da participação indígena nas decisões. “Isso ensinou muito a gente e ao governo. E nós de fato passamos a participar mais nas demarcações de territórios, na vigilância e até mesmo na proteção territorial”, relembra.
Hoje, Chico chama atenção para que os debates internacionais reconheçam as estruturas próprias já criadas pelos povos, como os fundos indígenas. “O Fundo Podáali, por exemplo, já está financiando projetos pequenos, mas que chegam direto às aldeias. Queremos que essas iniciativas sejam reconhecidas por quem apoia o Brasil na redução do desmatamento e no enfrentamento das mudanças climáticas”, destacou.
Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs)
Durante o evento, foram apresentados dois importantes documentos produzidos pelo movimento indígena no contexto da conferência do clima: a “NDC dos Povos Indígenas do Brasil”, elaborada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas organizações de base; e a “Declaração Política dos Povos Indígenas da Bacia Amazônica e de todos os biomas do Brasil para a COP 30” elaborada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e suas organizações de base.
Os dois documentos apontam a demarcação e a proteção territorial como principal meta climática dos povos indígenas, “condição a partir da qual nossas demais demandas são derivadas”, diz trecho da NDC dos Povos Indígenas do Brasil. A declaração política elaborada pela Coiab acrescenta: “A demarcação e a proteção integral dos territórios indígenas, em especial os territórios com a presença dos povos indígenas isolados e de recente contato, são políticas climáticas eficazes que garantem nossos direitos e fortalecem a conservação da biodiversidade e o equilíbrio climático”.
Aldear a COP 30
“Se nós estamos lutando para proteger os territórios, precisamos fazer parte. Há um sentido. Temos que falar e mostrar isso na COP, para o mundo. Estamos nos preparando para aldear as discussões e fazer com que a COP 30 tenha a maior e melhor participação indígena de todas as conferências”, disse, sob aplausos, a ministra Sonia Guajajara durante o evento. Ela participou do segundo dia do seminário e foi recebida calorosamente com apresentações culturais dos povos indígenas presentes.
Sonia começou seu discurso relembrando sua trajetória política dentro do movimento indígena, passando por organizações como Coiab e Apib, até chegar ao momento atual, em que é deputada federal eleita e a primeira ministra indígena do Brasil. “Nenhum de nós se sustentaria em um lugar, em qualquer ocupação de espaços, sozinhos. Cada avanço, por menor que seja, precisamos valorizar”, disse a ministra, direcionando o olhar para Chico Preto Apurinã, a quem reverenciou como um grande professor.
A ministra explicou as iniciativas do MPI para ampliar e qualificar a presença indígena na conferência do clima, citando, por exemplo, a “Aldeia COP”, espaço que será montado em Belém durante a conferência, destinado exclusivamente para cerca de 3 mil indígenas de todo o mundo. O local contará com estrutura para hospedagem, realização de feiras, eventos e articulações, nos moldes do Acampamento Terra Livre (ATL), realizado anualmente em Brasília (DF).
Sonia mencionou ainda que a meta do ministério é que pelo menos 500 lideranças indígenas participem da “zona azul” da conferência, local das negociações em si.
“Não temos que sair como vítimas e sim como protagonistas, como potências que preservam o meio ambiente. Temos que sair da COP mostrando para o mundo a centralidade dos povos indígenas para mitigação das mudanças do clima”, concluiu.
O Ciclo COParente já percorreu os biomas da Caatinga, Pampa, Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal e, agora, chega aos estados da Amazônia. Em cada etapa, representantes indicados pelo movimento indígena são escolhidos para participar da COP 30, enquanto as contribuições dos povos indígenas são sistematizadas e reunidas em um documento que deverá orientar o posicionamento do Brasil nas negociações climáticas globais.